domingo, novembro 06, 2011

O que é literatura?



Antonio Ozaí da Silva
A compreensão sobre o que seja literatura é uma construção histórica-social. Por outro lado, há uma hierarquização, fundamentada no cânone, que define e distingue a boa e má literaturas. Assim, não adianta gostar de ler, mas é preciso saber o que vale a pena ler.
Aliás, essa discussão é mais antiga do que parece. Outro dia, encontrei um livro de um autor do século XII, época do florescimento da “cultura livresca” e da formação das escolas ancestrais das universidades modernas. Em Didascálicon da arte de ler, Hugo de São Vítor ensina: “São três as regras mais necessárias para leitura: primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler, ou seja, o que ler antes, o que depois; terceiro, como se deve ler”. É preciso, portanto, não apenas selecionar bem o que ler, mas também adotar um método de leitura. “Parece-me que o estudante não deve tomar menos cuidado em não gastar tempo em estudos inúteis quanto em ficar desinteressado diante de um objetivo bom e útil. É mal fazer o bem com negligência, mas é p ior gastar muitas energias inutilmente”, enfatiza São Vítor. É essencial o papel do professor enquanto orientador das leituras, pois “nem todos possuem este discernimento para entender o que lhes é proveitoso”.[1]
Para Hugo de São Vítor, a escolha do que deve ser lido e a leitura bem feita, segundo um método adequado, tem como objetivo a Sapiência, ou seja, o “bem perfeito”. O homem medieval almejava atingir a “sabedoria divina”, pela leitura disciplinada, metódica e orientada pela experiência do mestre. O começo é o ato de ler, o qual leva à reflexão e contemplação. O homem moderno segue-o, ainda que compreenda a “sabedoria” num sentido laico. Chega-se à sabedoria pela leitura dos clássicos canônicos, incluindo o texto sagrado. Literatura, nesta perspectiva, não é qualquer “literatura” mas sim aquela merecedora da nossa dedicação. Não devemos desperdiçar energias. Se é desaconselhável e humanamente impossível ler tudo, temos que nos ater ao essencial. Quais obras, porém, constituem  o essencial”? Como selecioná-las? Onde encontrar a sabedoria?
Hierarquiza-se a literatura. Harold Bloom, perguntado se os livros da série Harry Potter não seriam “uma boa porta de entrada, um meio de despertar nas crianças o interesse pela literatura”, responde: “Você realmente acha que as crianças vão ler coisas melhores depois de ler Harry Potter? Eu acho que não”. O entrevistador insiste: “Por que não ler os livros de J.K. Rowling, a autora de Harry Potter?”. Ele afirma: “Li apenas uma das obras dessa autora. A linguagem é um horror. (...) A defesa de livros ruins como esses, que vem de todos os lados – dos pais, das crianças, da mídia –, é muito inquietante e nem um pouco saudável”. [2]
Mas, por que não ler gibis, literatura de cordel, fotonovelas, literatura infanto-juvenil, a “literatura cor-de-rosa”, etc.? Por que não, enfim, ler Harry Potter? Se a leitura é o início do saber, vale a pena ler tudo. Não me parece que a leitura de textos e livros não incluídos no índex canônico seja determinante para a não leitura dos clássicos. E, de qualquer forma, é preciso perguntar-se: o que é um clássico? Como de deu a sua canonização?
Harold Bloom ironiza a “Escola do ressentimento” – neste rótulo ele inclui toda a literatura crítica ao cânone ocidental, isto é, a literatura feminista, pós-colonialista, multiculturalista, etc. Será que as obras com esse viés não merecem a qualificação de literatura? Raciocínios como estes tendem a abstrair a história e a despolitizar a literatura, como se esta tivesse uma essência em si, independente de fatores sociais, culturais, políticos, econômicos e históricos. É uma postura que reduz a literatura à identificação com o cânone.[3]
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[1] DE SÃO VÍTOR, Hugo. Didascálicon da arte de ler. Petrópolis/RJ: Vozes, 200, p.45 e 139.
[2] Harold Bloom em entrevista à revista Veja, de 31 de janeiro de 2001. Disponível em http://veja.abril.com.br/310101/entrevista.html
[3] Sobre este tema ver: BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

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