sábado, agosto 06, 2011

“Tudo que é imaginário, existe, é” (Estamira)

Estamira Gomes de Sousa




“Tudo que é imaginário, existe, é” (Estamira)

Com roteiro e direção de Marcos Prado, Estamira é um documentário sobre uma senhora com 63 anos de idade, com distúrbios mentais, que trabalhou por mais de 20 anos no aterro sanitário do Jardim Gramacho, local que recebia cerca de 8 toneladas diárias de lixo produzido pelos cidadãos e cidadãs da cidade do Rio de Janeiro.[1] O documentário recebeu várias premiações, no Brasil e no exterior.[2]





O objetivo, aqui, não é fazer análise cinematográfica, nem resenha crítica do documentário. Não é a minha praia e muito já foi escrito. Quero apenas compartilhar com o leitor algumas impressões. Claro, não é um olhar despretensioso, indiferente ou neutro; sou consciente que o meu olhar traduz a minha experiência de vida, em seus aspectos pessoais e acadêmicos.

E talvez seja por ter desenvolvido um olhar político e sociológico, pois, afinal, faz parte da minha formação humana e intelectual, que fique a matutar sobre os motivos que levam alguém a filmar uma história como esta. O diretor Marcos Prado responde, em parte, a esta indagação: “No ano de 2000, seis anos após ter iniciado meu projeto, esbarrei com uma senhora sentada em seu acampamento, contemplando a paisagem de Gramacho. Aproximei-me dela e pedi-lhe para tirar o seu retrato. Ela me olhou nos olhos consentindo e disse para me sentar a seu lado. Conversamos por um longo tempo. Estamira era seu nome. Contou que morava num castelo todo enfeitado com objetos encontrados no lixo e que tinha uma missão na vida: revelar e cobrar a verdade. Nos tornamos amigos. Um dia, tempos depois de conhecê-la, ela me perguntou se eu sabia qual era a minha missão. Antes que eu respondesse, Estamira disse: “A sua missão é revelar a minha missão.” Decidi fazer um documentário sobre a vida dela.”[3]

E, de fato, Estamira conquista pela simpatia. Sua fala, muitas vezes desarticulada e sem sentido, também demonstra um lado lúcido, questionador e revelador das mentiras e hipocrisias que nos cercam e que, muitas vezes, constituem os castelos imaginários que nos oferecem a segurança de que precisamos tanto. Talvez a verdade seja enlouquecedora. O discurso de Estamira, ainda que entremeado pela ira legítima de quem sofreu dramas que deixaram marcas na alma e no corpo, revela uma certa sabedoria sobre o mundo, os que a rodeiam e os que, sob o manto da razão, são responsáveis por cuidar da sanidade mental dela.

Os depoimentos de Estamira e dos seus familiares rondam a miserabilidade humana. Sua história de vida mescla-se com as cenas da miséria dos que, como ela, vivem literalmente do lixo produzido por outros seres alheios à produção social dos resíduos materiais e humanos. Estamira, em sua lucidez, compreende o significado deste trabalho e dos trabalhadores, seus companheiros e companheiras de jornada. Percebe o grau de escravidão a que estão submetidos. Sua fala, portando, é reveladora das condições sociais que historicamente produzem seres humanos como ela.

Estamira chama a atenção pela rejeição a Deus. Ela mostra-se irritada nas situações em que tentam convencê-la sobre as verdades da religião ou simplesmente fazem referência à existência de Deus. “Quem fez Deus foi os homens”, afirmou ela. Sua fala, imagino, deve escandalizar os crentes mais fervorosos. Não obstante, eu a compreendo. Talvez este tipo de “loucura” seja necessário para romper o véu das nossas ilusões.

Estamira Gomes de Sousa faleceu na quinta-feira, 28 de julho de 2011, no Hospital Miguel Couto, na Gávea, zona Sul do Rio de Janeiro, em decorrência de infecção generalizada. Deixa-nos suas palavras e os ensinamentos de uma loucura permeada pela lucidez.

Ps.: Agradeço ao Alex William Leite pela sugestão…


[2] No Site oficial constam trinta e três (33) prêmios e reconhecimento em festivais de cinema: http://www.estamira.com.br/

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