quinta-feira, julho 07, 2011

A utopia se renova nos poemas ...

Poesia e Utopia




 Antonio Ozaí da Silva



Conheci o Alipio nos corredores e salas do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo (SP), nos primeiros anos da década de 1980. Ele trabalhava como jornalista e eu era um jovem descobrindo o mundo da política. Nossos contatos foram esporádicos, ditados pelas atividades sindicais cotidianas. Não obstante, foi marcante. Nossos caminhos tomaram diferentes direções, mas não o esqueci. Em minha mente ficou a imagem de um companheiro bem-humorado e solicito, mas também circunspecto e de poucas palavras. Seu jeito de ser, algo misterioso e com uma certa aura, atiçava a minha curiosidade e admiração. Eu sabia que ele era da geração que enfrentou a sanha assassina dos ditadores; e eu era apenas um jovem cuja experiência sindical e política se resumia a fazer greve, pichar muros e colar cartazes, participar de reuniões etc. Atividades que tinha o seu risco, pois, mesmo que em tempos de “abertura política”, ainda estávamos sob a ditadura militar. Porém, não podiam ser comparadas à militância dos companheiros e companheiras que semearam a utopia socialista e os tempos de liberdade, ainda que “burguesa”, com a vida e o sangue vertido nas ruas e prisões. Naquele tempo, homens como Alipio eram para mim seres quase que mitológicos, envoltos em mistérios e dignos de admiração.

Agora, vejo a imagem do Alipio em seu livro Estação Paraíso e descubro que também é poeta. Não sabia que tinha essa qualidade. O tempo passa e envelhecemos, mas a sua fisionomia ainda mantém os traços marcantes que ficaram em minha memória. Leio suas palavras e sinto que elas têm o vigor dos que persistem, apesar do passar do tempo e das mudanças políticas. As idéias teimam em não envelhecer. A utopia se renova nos poemas que expressam uma experiência de vida singular, numa perspectiva dos que sabem da necessidade de resgatar a memória histórica e fazer a crítica ao passado e presente, condições essenciais para evitar a repetição da tragédia e construir o futuro.

O passar dos anos contribui para o desencantamento. O mito desfaz-se diante do conhecimento da história. Descobrimos, então, que aqueles “deuses” eram seres humanos de carne e osso que partilhavam das nossas fragilidades humanas. Mas isto não diminui a admiração, apenas a coloca em novo patamar. Afinal, foram homens e mulheres que ousaram agir, ainda que em condições extremamente desfavoráveis. Cometeram erros, é verdade; mas romperam os diques do conformismo e atreveram-se a pensar e agir, acalentados pelo sonho da liberdade e a utopia de um Brasil diferente. Merecem o respeito das novas gerações. Os jovens de hoje precisam saber que a democracia, ainda que limitada e “burguesa”, não foi uma dádiva dos ditadores. O simples direito de poder votar é uma conquista regada pelo sangue dos que ousaram lutar!

Os poemas do Alipio expressam uma época em que a morte rondava os que, como Lola, anunciavam um novo tempo. Mas ele nos fala do nosso tempo, do presente. Os ditadores assassinaram jovens corpos cheios de vida e sonhos, com a vã esperança de, assim, aniquilar as idéias. Fracassaram. As idéias sobreviveram nos corpos marcados pela tortura e almas atormentadas pelas lembranças do sofrimento da carne; sobreviveram no resgate da memória dos que se foram; e foram revivificadas nos que vieram depois, os quais, ainda que não soubessem e percorressem outros caminhos, estavam imbuídos dos mesmos ideais.

A ditadura passou, a utopia permaneceu. Nos novos tempos das liberdades democráticas, a utopia foi instrumentalizada, incorporada e negada. Mercantilizada, tornou-se moeda de troca para a ocupação de postos no aparato do poder estatal. Hoje, os assassinos da utopia se metamorfoseiam em democratas e guardiões da ordem social; pragmáticos, não ousam ir além da política segura que lhes assegurem os lugares conquistados; seus discursos vazios de conteúdo conservam as condições de injustiça e desigualdade. Os assassinos da utopia do nosso tempo não precisam lançar mão de meios bárbaros, embora possam recorrer ao argumento do “estado de direito” para perseguir os que insistem em anunciar a aurora.

A utopia permanece como uma necessidade. É reconfortante vê-la renovada nas palavras do poeta:

O bicho homem constrói sua casassuas máquinas, sua vidasem perfeita harmonia entre sie com a naturezaReconciliados. As crianças de todas as raçassão coradas e sadiastodos s adultos seus pais e mãese o saber e a inteligênciasão repartidos igualmentecomo o pão e o vinhoo leite e o mel (p. 43-45).
O poeta se mantém fiel às idéias pelas quais lutou. É um modo de honrar a memória de Lola e de tantos outros que pereceram nos porões da ditadura militar. Seus poemas prenunciam a aurora que virá:

Auroraeu te divisoainda tímidainexperiente das luzesque vais acender dos bensque repartiráscom todos os homens  – Prenunciou o poeta gaucheem seu sentimento do mundo Antesmuito antesdo nascerAurora (p. 73).


A aurora anuncia o novo mundo, a utopia realizável. E a cada amanhecer do novo dia, ela se impõe como uma certeza a ser construída pelos homens e mulheres do presente e do futuro. Por outras “Lolas”, outros “Alipios” e poetas cujas palavras se transformam em ação. Estação Paraíso fala à alma dos que sentem o mundo e a necessidade de transformá-lo. As palavras do poeta denunciam a barbárie e nos comprometem com a luta por sua superação:

       Eles assassinaram a Aurora
 Restou ao dia amanhecersolitárioem rupturaradical Havemos de amanhecer O mundo se tingiráE o sangue que escorrer será docede tão necessáriopara colorir tuas pálidas facesAurora (p. 85). 

Sim. Porque apesar dos assassinos, no passado e presente, a Aurora se anuncia em cada alvorecer. Como frisa o poeta:

Apesar de todas as nossas misérias...Eppur se muove! (p. 107).


Os poemas de Alipio Freire precisam ser lidos e relidos. Situados no tempo através do texto introdutório escrito pelo próprio autor, seus leitores compreenderão a essência do seu significado. Mas do que compreender, é preciso senti-los. E não há como se manter insensível diante da veemência das palavras impressas no papel. A propósito, a edição de Estação Paraíso tem excelente qualidade. O mérito é da Editora Expressão Popular e evidencia a possibilidade de um projeto editorial que publique com qualidade e preço baixo, favorecendo o acesso aos bens culturais. O autor doou os direitos autorais à editora. Até porque seu livro é concebido como “um objeto poético”. Para Alipio, “transformá-lo em mercadoria é uma contingência fugaz do nosso tempo, como fugaz é o capitalismo” (p. 15). A escolha da Editora Expressão Popular é coerente com o ideário político do autor.

Um comentário:

  1. Ozaí, obrigada por se unir a Literacia. Para nós, uma honra.
    Seja bem vindo!
    anamerij

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