domingo, setembro 04, 2011


Ana Karênina



Há livros que lemos e passam, ainda que fique a impressão de que valeu a pena. Com o tempo, perde-se a mais remota lembrança e não resta nem ao menos o registro da obra e do autor. Há os que são úteis, que ajudam a compreender teorias, conceitos, etc.; que acrescentam algo. Há os que lemos com prazer – incluo, especialmente, a literatura.

Há outros que jamais esquecemos, que nos ensinam, nos comprometem e permitem-nos a práxis dialógica. São livros que nos transformam, que nos deixam a sensação paradoxalmente angustiante e prazerosa – a angústia pela exposição das nossas fraquezas e dos dilemas que nos parecem insolúveis; e o prazer pela alegria de compreender melhor o mundo, os indivíduos e suas relações e a nós mesmos e nosso lugar neste.

Há, ainda, livros que nos tocam profundamente, que falam da e à alma. São livros que expõem as nossas fraquezas e dilemas morais e humanos, demasiadamente humanos. Ana Karênina, de Leon Tolstói, é um exemplo.

Na sociedade patriarcal da era dos czares, Ana Karênina apaixona-se pelo Conde Vronski. O amor simplesmente acontece, é inútil buscar explicações. De início, ela racionalmente recusa-se a aceitar o que o coração dita. A razão clama para que ela afaste os sentimentos que a impelem para uma relação extraconjugal. Ela questiona-se insistentemente e, honestamente, procura extinguir a chama do amor. Mas a centelha permanece teimosamente arraigada em seu ser e alimenta o fogo da paixão. Ela termina por render-se ao amor. Não, ela não o faz irresponsavelmente. Ela tem consciência dos perigos inerentes à sua decisão. Mas ela não pode resistir ao amor.

Os hipócritas a culparão, a moral social a condenará. O marido exige que mantenha as aparências do matrimônio, clama pelos deveres conjugais, lança sobre ela os argumentos da religião e ameaça afastá-la do filho, em nome da honra, da moral e dos preceitos religiosos. Mas, como culpá-la por amar?

Ela paga um preço demasiado alto pela opção de viver o seu verdadeiro amor. A nobreza do sentimento que a faz desafiar as convenções sociais é incapaz de solapar a força da moral pública que os condena. O pior, no entanto, não é a culpa lançada sobre ela, mas o sentir-se culpada diante de si mesma. A autocondenação, pela introjeção da culpa, é o dilema moral dos amores proibidos e moralmente censurados.

Ana Karênina é “culpada” por amar? Numa sociedade patriarcal, onde prevalece a dominação masculina, exige-se da mulher, muito mais do que do homem, a fidelidade conjugal e a manutenção dos laços matrimoniais, sob qualquer circunstância. Se ela é mãe, a cobrança é ainda maior. Ela está “condenada a ser feliz” no casamento e no papel de mãe. E, de fato, tais exigências são muito intensas e é preciso muita coragem para não se submeter. Ainda que ela mantenha o matrimônio apenas por aparências, o amor maternal e a felicidade do filho são decisivos.

Ana Karênina ama o seu filho, mas não se submete à chantagem marital. O marido não a perdoa e, em nome da moral e da religião, a separa do filho. É um fardo muito pesado, mas o amor é forte e a ajuda a suportá-lo. Paradoxalmente, a paixão a impele à tragédia. O sentimento de culpa, o intenso sofrimento diante da separação do filho e a insegurança em sua relação com o Conde Vronski, lançam-na no desespero e ela termina vítima do ciúme.

Admiro Ana Karênina, admiro as mulheres que ousam lutar contra a opressão e por seus direitos, inclusive o de tentar ser feliz. Na ficção ou na realidade, o amor tende a se sobrepor à razão. Nisto reside a sua força e a fraqueza. O necessário equilíbrio entre a razão e a emoção é muito difícil, mas não é impossível. É preciso tentar compreender ao invés de culpabilizar. Pois amar é humano, demasiadamente humano!


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